Artigo: “Abolicionismo Penal”, por Rafael Figueiredo
Bom dia, pessoal! Aqui é o Rafael Figueiredo e como de costume, falaremos sobre criminologia. Tenho notado que a leitura deste assunto dificilmente instiga o leitor. Talvez pela densidade, talvez pelos termos diferentes, não sei… O que ocorre é que essa matéria não somente é instigante como FUNDAMENTAL para as ciências criminais. Todos os concursos deveriam incentivar seu estudo, pois, certamente, traz discussões muito profundas que realmente modificam a forma de (re)pensar o assunto.
Pensando nisso, nossa proposta será, a partir de hoje, tratar de modo extremamente leve esses assuntos, ok? Vamos tentar manter um diálogo, de forma que ninguém fique com dúvida do que foi dito e possa, não somente acertar a questão na prova, mas, mais que isso, tenha uma visão completamente crítica dos assuntos que nos enfiam goela abaixo. Peço licença, desde já, para tecer algumas críticas minhas que, por óbvio, não são verdades absolutas. Assim, continuo inteiramente à disposição para receber comentários, complementos e julgamentos do que foi dito.
Bora pro tema: abolicionismo penal!
“O sistema carcerário está falido”, “o direito penal não cumpre seu papel”, “deve-se punir mais” ou então “deve-se punir melhor” são algumas das “soluções” que as pessoas dizem por aí. Mas será que melhorar o sistema carcerário ou humanizá-lo significa uma melhora? À primeira vista, sim. Contudo, não é esse o entendimento de quem defende o abolicionismo penal.
Essa linha de pensamento nasceu durante o século XX, quando se passou a questionar a legitimidade das penas. É que até então somente existiam teorias que as justificavam. Sabe toda aquela história de prevenção geral e especial? Não lembra? Bora relembrar:
1. Teoria Absoluta: a pena se presta a retribuir o mal causado.
2. Teoria Relativa: a pena tem funções a mais.
• Prevenção Geral: o foco é a sociedade. Pode ser:
1. Positiva: reafirmar a norma.
2. Negativa: intimidar.
• Prevenção Especial: o foco é o apenado. Pode ser:
1. Positiva: ressocializar.
2. Negativa: neutralizar; evitar a reincidência.
Ok, mas e aí? O negócio é que o abolicionismo nega todas essas funções. Ele tenta deslegitimar as penas. Diz que a pena não intimida (Prev. Geral Negativa), não neutraliza (Prev. Especial Negativa) ou ressocializa (Prev. Especial Positiva) ninguém. De modo que, não cumprindo esses papeis, razão alguma existiria em funcionar para reafirmar a norma (Prev. Geral Positiva). Tais conclusões são fundamentadas da seguinte forma:
Em relação à intimidação, basta ver que ninguém deixa de cumprir a norma por imaginar a gravidade de seu delito: acho que vou vender esse papelotezinho hoje. Peraí… É CRIME EQUIPARADO A HEDIONDO?! Sem condições, se eu for condenado vou ter que cumprir 2/5 pra progredir. Certamente não é isso que ocorre, não é mesmo?!
As pessoas cometem crimes por desnecessidade, por problemas psicológicos, ou por qualquer outra razão, mas não pela “intimidação” da norma. Pra exemplificar, tem uma teoria que trataremos mais à frente, chamada “teoria da associação diferencial”[1]. Esta diz, dentre outras coisas, que o agente percebe no crime mais vantagens que desvantagens. Interessante, não?
Em relação à promessa de prevenção especial negativa (neutralizar/evitar reincidência), esta é absolutamente mentirosa. É sabido que extorsões, tráfico de drogas, lesões corporais, homicídios… para dizer o mínimo ocorrem, todos os dias dentro dos presídios brasileiros.
Não podemos esquecer que o PCC foi criado em 1993 dentro de um presídio que, aliás, era considerado o mais seguro de São Paulo. O Comando Vermelho e a Família do Norte, de igual modo, nasceram em penitenciárias. Não tem muito como discordar dos abolicionistas, não é mesmo?
Vamos em frente.
A falácia de ressocializar o agente talvez seja a pior de todas. É que estatisticamente o número de pessoas que tornam a cometer crimes é imenso. Além do mais, não faz qualquer sentido que alguém seja isolado/segregado da sociedade para aprender a viver em sociedade, ou seja, livre. Isso imaginando um presídio de excelente qualidade. Agora vocês se lembram do Estado de Coisas Inconstitucional que vive nossos presídios, lembram não? Pois é…
A situação é tão caótica que o preso volta mais nocivo para a sociedade, isto é, mais dessocializado. Pensando nisso, há quem diga, como Anabela Miranda Rodrigues, que a primeira preocupação do cárcere deve ser em não dessocializar[2] o sujeito para, somente após, querer socializá-lo. Em outras palavras, a promessa de ressocialização através da punição não se concretiza.
Dessa discussão surgem vozes no seguinte sentido: “Mas sem o direito penal, a vida em sociedade se tornaria inviável”. Contudo, não é isso que pensam os abolicionistas. Dizem que a sociedade já vive sem o direito penal. Lembram-se das cifras negras? Pois então, o negócio é que existem MUITO mais crimes que não são notificados nas agências estatais do que os que são registrados. Sem falar naqueles registrados, mas que são engavetados ou prescrevem antes mesmo de uma denúncia. Tá lembrado daquele livrinho que você mandou para o amigo no whatsapp? Ou então aquele seu amigo que vendeu um cigarrinho de maconha pra outro na balada ou no campus da faculdade? Pois é. Nada disso chega ao conhecimento dos órgãos de poder e nem por isso o caos está instalado.
E não é só. Louk Hulsman diz que como os crimes se dão entre pessoas, somente elas é que poderiam, através de compensação, arbitragem ou até mesmo terapia, solucioná-los. O Estado não estaria legitimado a “roubar” esse conflito delas, diz Nils Christie[3]. A solução, portanto, estaria nos modelos das esferas cível e administrativa.
Também não podemos esquecer de quem está segregado. É coincidência que negros, pobres e jovens sejam as maiorias dentro das prisões? Evidente que não. Acontece que o direito penal é seletivo e estigmatizante. Amigos, vocês acham que a polícia sabe lidar com crimes que não sejam esses “cometidos” pelas classes mais baixas? Não só a polícia. Acham que promotores e juízes sabem aplicar os tipos penais que criminalizam condutas de grandes empresários? Vamos além! A parte geral do direito penal é preparada para responsabilizar crimes sofisticados? Claro que não! Temos que nos valer de teorias como domínio do fato, actio libera in causa, cegueira deliberada, dentre outras que, não raras vezes, esbarram em uma responsabilidade objetiva. O que quero dizer é que o sistema foi feito para manter o status quo. Para aumentar, ainda mais, o abismo entre ricos e pobres, enjaular os indesejados, as pessoas que temos nojo, para que não precisemos conviver com elas. Essa conclusão é digna de choro…
Portanto, para o abolicionismo, o sistema penal é uma máquina de produzir dor inutilmente. Não inibe o crime, tampouco ressocializa o agente.
“Rafa, mas já ouvi falar das APACs[4]. Que tal?” Galera, o grande problema é se isso não seria humanizar o holocausto(?), como sugere Gabrielle Nascimento[5]. A raiz do problema continua sem ser solucionada. Os excluídos continuam sendo presos, torturados, mortos etc. Além do mais, parece ser discutível a ideia de que as APACs evangelizam os condenados, quando se vive num Estado laico.
“O que vamos fazer então?” Não há uma resposta, mas alternativas já existem e não precisamos de respostas para tomarmos atitudes. Olhem o que Louk Hulsman diz:
Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça.[6]
“Mas acabar com as prisões é muito radical, Rafael!” A verdade é que não há nenhum mal em atitudes radicais, quando fundamentadas. Não podemos esquecer que também era radical a ideia de prender o sujeito, ao invés de executá-lo em público.
Espero que tenham gostado. Um abraço!
Rafael Gonçalves Figueiredo
@rafaelgonfigueiredo
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[1] Será objeto de outro artigo.
[2] RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária. 2ª ed. Coimbra: Coimbra editora, 2002, p. 52.
[3] VIANA, Eduardo, Criminologia, 4ª edição, Editora Juspodivm, 2016, p. 291-292.
[4] https://www.youtube.com/watch?v=HyszzMutxeU vídeo falando sobre as APACs; https://www.youtube.com/watch?v=2C8ivefzZto&t=1546s vídeo em que Jout Jout se retrata sobre as APACs; https://www.youtube.com/watch?v=xA__mSpRQRY&t=5s vídeo do Gregório Duvivier que também fala sobre APACs. Todos os três são excelentes. Assistam!
[5] https://medium.com/@gabriellerib_/oi-jout-jout-senta-aqui-e-se-a-gente-humanizasse-o-holocausto-83af65bdbea1.
[6] HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas Perdidas. O sistema Penal em Questão. Rio de Janeiro: Luam apud VIANA, Eduardo, Criminologia, 4ª edição, Editora Juspodivm, 2016, p. 288.
Escrito por Rafael Gonçalves Figueredo: advogado, especialista em Direito Processual Penal, e aprovado no IV Concurso para Defensor Público de Rondônia.
Fonte da Notícia: Rafael Gonçalves Figueiredo