29 de janeiro de 2020 17h21min - Atualizado em 30 de janeiro de 2020 às 15h50min

Inconstitucionalidade das novas regras para progressão de regime na lei “anticrime”, por Diego de Azevedo Simão

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A Lei 13.964/2019, de 24 de dezembro de 2019, inseriu significativas modificações na legislação processual penal, na legislação penal e na legislação de execução penal.

No que toca à execução penal, a novel legislação apresenta irrefutáveis retrocessos, posto que viola o sistema progressivo de cumprimento de pena, não contribui para a ressocialização (objetivo declarado na LEP), aumenta o tempo de aprisionamento e o gasto público com execução penal, além de não existir nenhuma comprovação de que o recrudescimento da lei penal diminuirá a criminalidade (falácia sustentada por quem defende essa espécie de legislação simbólica e populista).

A progressão de regime prisional, a partir da vigência da lei em 23/01/2020, exigirá um maior período de cumprimento da penal, conforme abaixo demonstrado:

No que diz respeito ao Livramento Condicional, o instituto também sofreu impacto significativo com a vedação da concessão do direito ao livramento, vejamos:

Quanto ao tempo de cumprimento de pena, a alteração do artigo 75 do Código Penal alterou o tempo máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade em 10 (dez) anos, elevando de 30 (trinta) para 40 (quarenta) o perído máximo de prisão, o que, sem qualquer dúvida, impactará tanto no superencarceramento quanto no aumento de gastos públicos.

Assim, diante desse novo regramento, verifica-se um significativo aumento de tempo de prisão, com o aumento do período para a obtenção de progressão de regime e vedação ao livramento condicional, construção legislativa que contrariou, diretamente, a força normativa da decisão prolatada em 09/09/2015 pelo STF, nos autos da ADPF 347, de relatoria do Min. Marco Aurélio, que declarou o estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro.

Na ADPF 347, diante do inegável quadro de superlotação carcerária existente no país e das desumanas condições de encarceramento, a decisão liminar reconheceu que “Presente quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária, deve o sistema penitenciário nacional ser caracterizado como ‘estado de coisas inconstitucional (ADPF 347 MC, Rel. Min. Marco Aurélio. j. em 09/09/2015).

Nessa quadra, a superlotação carcerária, embora há tempos presente no sistema penitenciário nacional, foi reconhecida pelo STF no ano de 2015 (na ADPF 347) como caracterizadora do “estado de coisas inconstitucional”, e resultou na determinação de medidas para reduzir o superencarceramento, dentre elas, a realização de audiência de custódia em todo o território nacional.

Assim, o reconhecido “estado de coisas inconstitucional” passou a exigir que toda e qualquer manifestação do Estado, seja por meio de decisões de juízes e tribunais, ato do Poder Executivo ou medida Legislativa, tal qual a Lei 13.964/2019, observe a trágica realidade do sistema penitenciário nacional.

Justamente por isso, a Lei 13.964/2019 violou a autoridade da decisão do STF na ADPF 347 em ao menos dois pontos: o primeiro, por não observar o quadro trágico do sistema penitenciário brasileiro no processo legislativo; o segundo, porque a elevação do tempo para obtenção de progressão de regime, a previsão de novas hipóteses de vedação de livramento condicional, e o aumento do tempo máximo de prisão (de 30, para 40 anos), irá resultar em maior tempo de aprisionamento e em significativa piora no quadro de superlotação carcerária, o que, portanto, vai na contramão da decisão do STF.

Não bastasse isso, ao impactar em maior período de encarceramento, a nova lei também violou a Constituição Federal, especificamente o artigo 113, da ADCT, introduzido pela EC n. 95, de 2016, a qual expressamente prevê que “A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.”

Em decisão cautelar prolatada na ADI 6299 no dia 22/01/2020, o Min. Luiz Fux suspendeu a eficácia dos artigos 3º-A a 3º-F, do CPP (Juiz das Garantias), introduzidos pela Lei 13.964/2019, em decisão que, dentre outros argumentos, sustentou a violação ao artigo 113 da ADCT, vejamos:

Outrossim, a criação do juiz das garantias viola o Novo Regime Fiscal da União, instituído pela Emenda Constitucional n. 95/2016. O artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, acrescentado por essa emenda constitucional, determina que “[a] proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro.” Não há notícia de que a discussão legislativa dessa nova política processual criminal que tanto impacta a estrutura do Poder Judiciário tenha observado esse requisito constitucional.

Em suma, concorde-se ou não com a adequação do juiz das garantias ao sistema processual brasileiro, o fato é que a criação de novos direitos e de novas políticas públicas gera custos ao Estado, os quais devem ser discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo, considerados outros interesses e prioridades também salvaguardados pela Constituição. Nesse sentido, não cabe ao Poder Judiciário definir qual a prioridade deve ser mais bem contemplada com o uso do dinheiro arrecadado por meio dos tributos pagos pelos cidadãos – por exemplo, se a implantação do juiz das garantias ou a construção de mais escolas, hospitais, ou projetos de ressocialização para presos. Afinal, esse ônus recai sobre os poderes Legislativos e Executivo. No entanto, por estrita aplicação da regra constitucional do artigo 113 da ADCT – aprovada pelo próprio Poder Legislativo – compete ao Judiciário observar se os requisitos para concretização dos interesses que o legislador preferiu proteger obedeceram às formalidades exigidas, especialmente quanto ao estudo de impacto orçamentário.

É evidente que a fundamentação apresentada na decisão do Min. Luiz Fux conduz a segura conclusão de que as normas que aumentam o tempo de cumprimento da pena, assim como aquelas que elevaram os períodos para a progressão de regime e vedam o livramento condicional também afrontaram o comando do artigo 113 da ADCT. Aliás, por certo, o impacto orçamentário e financeiro será muito maior com o aumento de tempo de aprisionamento do que com a criação do juízo de garantias.

Ora, seguindo o raciocínio da decisão do Min. Fux pode-se afirmar que não há notícia de que a discussão legislativa dessa nova política de execução penal, que tanto impacta os gastos públicos (sobretudo do Poder Executivo) tenha observado esse requisito constitucional (art. 113, da ADCT). Seguindo a mesma argumentação apresentada na decisão do Min. Fux, concorde-se ou não com o aumento do período de encarceramento, o fato é que a criação de maiores punições e a nova política de encarceramento gera custos ao Estado, os quais devem ser discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo, considerados outros interesses e prioridades também salvaguardados pela Constituição.

Nessa ordem de ideias, é induvidoso que o aumento do tempo de encarceramento impacta diretamente no orçamento, gerando gastos públicos com a elevação do tempo de prisão, sobretudo em regime fechado.

Bem por isso, a inovação legislativa na execução penal, que recrudesceu o tratamento penal e elevou o tempo de prisão e, por consequência, resultará em aumento dos gastos públicos com o encarceramento, deveriam ser previamente discutidos e sopesados pelo Poder Legislativo, considerando outros interesses e, inclusive, outras medidas de combate ao superencarceramento, conforme já decidido no ano de 2015 pelo STF, na ADPF 347.

Assim, tendo em conta o fundamento exposto no voto do Min. Fux na ADI 6299/DF – violação ao art. 113 da ADCT – e o declarado estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional (ADPF 347, Rel Min. Marco Aurélio), há de ser reconhecida a inconstitucionalidade da Lei 13.964/2019 no que toca aos artigos que introduziram modificações no Código Penal e na Lei de Execução Penal para elevar o tempo de pena, para aumentar o período para a progressão de regime ou para vedar a obtenção de livramento condicional.

Fonte da Notícia: Diego de Azevedo Simão